Um livro é um livro é um livro. E a vida é a vida é a vida. Que um e outra possam se confundir tem sido, desde sempre, um tema da própria literatura. Autobiografias habitualmente cultivam a ilusão da verdade; mas nada é habitual neste caso, a começar pela capa, com uma foto do autor menino abaixo de seu nome e a palavra “ficção” acima. O título em italiano já acrescentava um grau de estranheza ao que é próximo, na memória recobrada e inventada.
Não há como não ler esta novela como relato de vida, quando tanto já se leu sobre a de Chico Buarque. Mas não há como não perceber o quanto existe de fabulação, também, desde as menores minúcias até o grande desenho, que organiza o livro com virtuosismo. Nem as fotos que pontuam o texto ficam livres de ambiguidade. Isto posto, é comovente pensar no autor agora octogenário, passadas as agonias da história brasileira recente – já elaboradas por ele no romance Essa Gente e nos contos de Anos de Chumbo – , e com uma grande (supostamente a última) turnê de shows para trás, voltando por fim à infância e à essência das coisas.
Está tudo aqui. As primeiras paixões e a
descoberta do erotismo, sem deixar de fora relatos de abuso; prenúncios de talento musical; a condição estrangeira, o aprendizado das línguas, o gosto pelos livros e pela escrita; as diferenças de classe, o racismo, a xenofobia; a história política; a mãe, as irmãs, os irmãos, o pai; o futebol, a bicicleta, o prazer sensível das coisas; a poesia, a canção, o poeta (Vinicius); a passagem do tempo, a busca de entendimento, o mal-estar sonhado ou sofrido de um alter ego que escreve a própria história, numa última volta do parafuso, que fecha o livro com a emoção da ideia quando ginga. E ainda uma volta, na foto de um bilhete que serve de ps (e de prelúdio). Tudo, como sempre, com muita ironia egraça, mas sem perder o lastro humano de maldades e perversidades, não menosque felicidades. Que a soma penda para as últimas, talvez seja ilusão de quemlê, mas tem sua dose de verdade, no mínimo, dentro do livro.