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Blood Meridian, de Cormac McCarthy

O Western dos Westerns, ecoando – Ilíada, Bíblia e Moby Dick – resenhada por Arthur Nestrovski. [1.3.2024]


12 de agosto, 2024

[Blood Meridian]

Quatro décadas depois de seu lançamento, já se tornou senso comum apontar Melville, Faulkner e a Ilíada como referências de fundo em Blood Meridian. E alguns meses desde a morte do autor, em 2023, aos 89 anos, confirma-se a avaliação do livro como a obra-prima de Cormac McCarthy, sem desprezar outros romances como All the Pretty Horses e This is no Country for Old Men.  “Nenhum outro romancista norte-americano, nem mesmo Pynchon, já nos deu um livro tão poderoso e inesquecível como Blood Meridian”, escreveu Harold Bloom. Para ele, o livro fica acima até do melhor de Roth, DeLillo e Pynchon; e o personagem “judge” Holden tem a dimensão do Iago de Shakespeare (em Othello) e do capitão Ahab de Melville (em Moby Dick).

Para um leitor brasileiro, a prosa de McCarthy faz pensar numa aparentemente impossível combinação de Euclides da Cunha, Graciliano Ramos e Guimarães Rosa. A descrição de paisagens – desertos áridos do Texas -- chega a planos raramente tocados, de extraordinária riqueza vocabular. Cada frase parece mais esculpida do que escrita e não tem fim a variedade de detalhes e mutações de apoteose na vastidão de areia e pedra. Contrapõe-se a este o registro popular dos diálogos, um idioleto “Western” do século 19, que McCarthy recria com ouvido absoluto. Povoados miseráveis são visitados pela “gangue de Glanton” e fotografados por lentes livres de um traço sequer de sentimentalismo. Mas tudo flutua num espaço imaginativo em que realidade e mistério são igualmente transparentes, ou então
indecifráveis. 

Não bem um romance, parece mais
um épico em prosa; mas um épico esvaziado de ideais. Poucos livros – a Ilíada é um – são tão sangrentos quanto este. As matanças, individuais e coletivas, ocorrem em sucessão cotidiana, quando a gangue parte em busca de apaches. Atende a contratos firmados com autoridades norte-americanas e mexicanas, ao valor de 100 dólares por escalpe. (Os escalpes devem ser apresentados como evidência do serviço.) Mas o empenho de morte vale para todos, de todos os lados, sem outro sentido que não a repetição -- que, em algum momento, sempre se torna autodestrutiva. Tudo é tão violento que custa acreditar na verdade da gangue, comprovadamente histórica. Assim como do “juiz” Holden, um albino glabro de dois metros de altura, que alterna brutalidade máxima e naturalidade crua com conhecimento humanístico, científico e artístico, e que tem no “kid”, o menino sem nome, seu único, insuspeitado, mas (um quarto de século mais tarde) verdadeiro declarado opositor. 

Exceto, quem sabe, pela aparição de um caminhante que avança entre as rochas quentes de fogo, seguido por outros tantos, na última página do livro, uma enigmática coda. “O autêntico romance apocalíptico americano”, disse Bloom, numa introdução escrita há quase 25 anos. “O Western supremo e insuperável.” De lá para cá, o julgamento do grande crítico só se reafirmou; e a realidade, como se viu, como se vê, só se empenha em tornar o livro mais relevante ainda.

PS: existe edição brasileira, Meridiano de Sangue, em tradução de Cássio Arantes Leite. Mas não
tive acesso a ela e não posso avaliar o texto em português.