Que o prêmio tenha gerado tanta controvérsia, para não dizer tanta violência; que a importância da canção como gênero próprio de poesia – palavra cantada – não seja plenamente reconhecida nem mesmo entre nós, que desfrutamos de uma tradição tão extraordinária nesse campo; que a dimensão de Bob Dylan como poeta americano, no sentido ao mesmo tempo estrito – um virtuose do artesanato da poesia – e amplo – um bardo visionário na linhagem de Whitman e Hart Crane; que não seja, afinal, tão conhecida a riqueza dessa obra, onde se cruzam de modo único as vertentes mais diversas da poesia e da música, de Yeats e Tennyson a Woody Guthrie, Robert Johnson e um cauladoso rio do rock do qual ele mesmo é uma das fontes; que a poesia cantada, numa história que remonta ao canto gregoriano e aos trovadores, sem falar nas milenares artes da literatura oral ao redor do mundo, ainda precise pedir licença, entre os que nunca lhe prestaram atenção; que não se reconheça no prosador de Chronicles: Volume 1 (2004) aquele que é também o maior cancionista da sua língua – de modo análogo ao tratamento que se dispensa ao maior romancista brasileiro da atualidade, que acontece também de ser o maior compositor de canções; que surpreendentemente não se tenha comentado tanto o papel desse prêmio em promover as mais urgentes causas libertárias, encarnadas como poucos nesse poeta-cantor; tudo isso só faz comprovar o acerto do prêmio, raras vezes tão pertinente como nessa edição. Viva Dylan – e viva também a canção popular brasileira, que para nós, pelo menos, ganha um pouco esse Nobel junto com ele.