São Paulo: Companhia das Letras, 2019
Numa de tantas cenas que não se sabe bem se são sonho ou realidade, o narrador, na casa da ex-mulher, tradutora de literatura inglesa, vê espalhados na cama dela os textos de algumas peças de Shakespeare, entre elas Sonhos de uma Noite de Verão. Assim mesmo, no plural, repetido cinco linhas abaixo, para não deixar dúvida. Como uma história anterior já evidenciara comicamente a mania de Maria Clara em “corrigir” ou “melhorar” os textos que traduz, esse “s” a mais nada tem de casual; serve de emblema do virtuosismo de Chico Buarque em definir personagens e situações num mínimo de espaço, com o máximo de efeito, neste livro que diz muito mais do que parece, ainda mais no que não diz.
Na sequência, Duarte encontra um revólver, que a ex (e mãe de seu filho) agora guarda em casa, e que ele se apressa em remover dali. Caminhando de arma em punho pela madrugada, no Leblon, ouve saudações efusivas – “É isso aí, mestre!”, “Contamos contigo, capitão!” – de vizinhos imbuídos do novo espírito dos tempos. Nada vem do nada e tudo se liga a tudo, num pequeno grande romance que é todo ele um incrível quebra-cabeça; e cenas assim resumem não só a tragicomédia do escritor-narrador, em suas peripécias com ex-mulheres, ex-amigos, editores, cães, socialites, favelados, figuras históricas e um núcleo de fantasmas íntimos, como também a cidade do Rio e o país que está aí.
À primeira vista, trata-se de um diário do ex-romancista Duarte, autor do outrora famoso best-seller histórico O Eunuco do Paço Real e onze outros livros, há muito incapaz de redigir algo que preste, às voltas com dívidas e promessas. Mas as aparências enganam.
As aparências revelam, também. “Você no livro é preto ou branco?”, indaga o salva-vidas negro Agenor. “Boa pergunta”, responde o mulato Duarte, sem responder. A conversa causa surpresa para quem lê, até ali decerto sem pensar no assunto. Mas este é o assunto; e não vem de hoje o interesse de Chico Buarque, autor de Leite Derramado (e onze outros livros, contando este), pelas chagas da questão racial no Brasil.
Agora que foi consagrado com o Prêmio Camões – e ungido com a não assinatura do Capitão –, não se faz mais necessário separar o romancista do compositor, como era praxe para legitimar a obra literária. Ele mesmo cita algumas de suas canções no texto (“Anos Dourados”, “Bia”, “Renata Maria”), com bem humorada leveza. No contexto mais profundo do livro, pode-se pensar também em canções como “Sinhá” (que fechava o disco Chico, de 2011), um roteiro racial colonial que ao mesmo tempo é de família também, para os Buarque de Hollanda; canção essa que, por sua vez, se liga a “Tua Cantiga” (abrindo o disco seguinte, Caravanas, de 2017), com aquele “minha nega” na última estrofe, entregando a história; e ainda “As Caravanas”, que já explicitava a loucura dessa “gente ordeira e virtuosa que apela/ pra polícia despachar de volta/ O populacho para favela/ Ou para Benguela, ou pra Guiné”.
Nada vem do nada, aqui, e nada é por acaso. Salta aos olhos uma alusão a “Querido Diário”, por exemplo, na cena em que o amigo Fúlvio (fulvo, assim como Maria Clara é clara) Castello Branco (imagina-se que da família do primeiro general presidente da ditadura militar) maltrata um morador de rua na entrada do Jockey Clube; e saltam aos imaginários ouvidos os versos de “Manhã de Carnaval”, canção de Luiz Bonfá e Antonio Maria, na trilha de Orfeu Negro, filme de 1959, na esteira de Orfeu da Conceição, o antológico musical de Vinicius de Moraes e Tom Jobim, que inaugurou a Bossa Nova. Foi essa última canção, com seus ideais de uma civilidade amorosa e sem preconceitos, que levou a judia holandesa Rebekka, namorada de Agenor, a vir para um sonhado Brasil – repetindo a seu modo a história, já bastante difundida, da mãe branca de Barack Obama, que também adorava o filme.
A distância que nos separa daquele momento – do “país da delicadeza”– parece hoje tão enorme quanto a que contrasta os delicados versos da canção com o “tá na área/…/ metralha” de um funk que divide com ela outra página do livro. E, como tudo se liga a tudo, entra em cena ali o castrato Everaldo Canindé, atualizando, com seu rival Ezequiel, uma longa história de meninos negros castrados para cantar bonito – história cuja origem está na passagem da corte portuguesa pelo Rio, em inícios do século 19, romanescamente retratada no Eunuco do Paço Real e servindo aqui de cifra para outras tantas violências.
As aparências encantam, também, nesse só aparente diário, que logo se revela outra coisa, com as cartas de terceiros (para outras pessoas), conversas registradas por extenso em várias vozes e uma cronologia aberratória que nos leva, entre idas e vindas, de novembro de 2018 a setembro de 2019. Entender o que pode ser isso pede alguma atenção. O conjunto forma um jogo de espelhos, e muito do principal só se deixa entrever por indícios, aqui e ali. Labirintos assim já definiam a forma de um romance como Budapeste (2003) ou de uma canção como “Rubato” (2011), para ficar nesses dois estudos de autorias roubadas. Mas aqui a pressão parece de outra ordem.
Que isso não seja mal entendido: o livro chega ser muito engraçado, uma alegria de se ler. Talvez seja o melhor romance do Chico. O cuidado que o texto exige de nós não diminui em nada a graça desses sonhos de uma noite de verão, na verdade muito mais para pesadelos, não fosse pesadelo maior o que aguarda o sonhador ao despertar.
Uma cena, em especial, nos ensina que o que estamos vendo não parece o que parece. É quando o narrador mostra para Rebekka um texto onírico erótico com a própria holandesa de protagonista e que já lemos poucas páginas antes. Quer dizer: uma personagem “real” lendo sobre si mesma, como personagem, no texto do narrador. Que afinal é um personagem também, é ou não é? Mas personagem no livro de quem?
Cabe ter em mente que esse narrador não faz quase outra coisa senão narrar histórias de si mesmo como escritor que não consegue mais escrever. Quer dizer: o narrador Manuel Duarte é, ele mesmo, um personagem-autor do “diário” que agora estamos lendo: a história da impossibilidade de contar a história – escrita, só pode ser, pelo “próprio” Manuel Duarte, autor do livro. Não dá para revelar o quanto isso se mostra ainda mais engenhoso e importante na trama, com alucinantes requintes edipianos, sem estragar a leitura. Mas ressalte-se que esse escritor – o autor do autor do suposto diário – é, por sua vez, um personagem do escritor Chico Buarque, autor do autor do autor. E quem estará por trás deste autor?
Tantas distâncias, espelhos e sonhos talvez fossem mesmo imprescindíveis para falar do nosso pesadelo real. Personagem, autor e cancionista se confundem em tramas dentro e fora do livro. Sessenta anos depois de “Manhã de Carnaval”, nada poderia estar mais longe daquela visão do país do que Essa Gente. Quando chegarem os escafandristas, quando o Rio for uma cidade submersa e o Brasil tiver acabado de vez, só vão precisar deste livro para entender o que se passou.