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O homem não existe, de Ligia Gonçalvez Diniz

Um tratado muito original sobre a masculinidade na ficção literária, ao longo dos séculos. Ao mesmo tempo, um acontecimento literário em seus próprios termos. (Zahar, 2024)


12 de agosto, 2024

O livro é longo; a vida é breve. Mesmo assim, dá muita pena de terminar a leitura. Não só pela riqueza e variedade e coragem das ideias – sempre remando contra a cartilha –, nem só pela extraordinária inteligência da autora, que ela cultiva com alegria, assim como um grande músico exerce seu talento, sem precisar se desculpar por isso. LGD, de resto, jamais oprime quem lê. Pelo contrário: cada página nos torna um pouco mais inteligentes, junto com ela.

Também não é só pelas proezas de estilo que dá dó de acabar o livro. Praticamente a invenção de um novo gênero, no qual a primeira pessoa, ao mesmo tempo, é fonte e veículo do que está sendo dito. Que coisa mais linda e mais cheia de graça é essa língua que passa, misturando registros alto e baixo com a maior naturalidade, até porque tudo neste livro é íntima e irresistivelmente pessoal, sem deixar de lado os rigores da pesquisa. Quanta erudição! Quanta leitura! E discos e filmes e séries. Tudo vivido por dentro, com assombro e paixão, de Homero a Fleabag, de Shakespeare a Anne Carson, de Montaigne e Stendhal a Bob Dylan, Caetano Veloso e Joan Baez. E nada, nada, nada se sobrepõe à experiência da leitura, uma intensidade quase física, que LGD cultiva como seu maior tesouro.

A coisa vai mais longe ainda. Claro que o livro se apresenta como não-ficção. Mas será mesmo? Ou só isso? A vida é breve, dá vontade de falar muito mais sobre essas 380 páginas, cada uma um espetáculo, sem exceção, cada parágrafo aberto a esmo uma fonte de aventura, um influxo de vida. Mas talvez nem sejam as ideias o mais importante – mesmo quando tocam, com bravura, em muitos nervos do nosso momento: masculinidade, feminismo, batalhas identitárias –; nem também as passagens de leitura crítica, nesse livro que avança rapsódica ou jazzisticamente, sem perder a elegância da estrutura, quase uma concessão profissional, para quem escreve com tamanha segurança e liberdade. Acima de tudo, o que nos prende, o
que vai ficar conosco para sempre é essa voz que se projeta em monólogo, da primeira à última linha, com direito a dezenas de vinhetas e tiradas autobiográficas e a um pequeno elenco de figurantes, escolhidos a dedo: marido, mãe, pai, mais uma limitada e cômica lista de desajustados do passado. 

Do ponto de vista de quem lê, quem escreve o livro é esta personagem, cujo nome coincide com o da autora. “Eu é uma outra”, poderia ter dito. Para além da riqueza de ideias, para além do
espetáculo da prosa, o que o livro nos dá é a presença dela, ao mesmo tempo uma das maiores escritoras e uma das maiores personagens da literatura brasileira deste primeiro quarto de século, que aos trancos e barrancos vai chegando ao fim.